The Holy Package — SIDE B
BASSANTI & BINAU
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12 JAN A 16 FEV ’17
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Como articular um discurso sobre significações de singularidades estéticas sem as limitar às (des)confortáveis barreiras de conceito do paradigma teórico? Perante a possibilidade de fruição directa sobre os objectos artísticos, tornar legível o visível é um papel ingrato para qualquer crítico ou curador. A arte, enquanto lugar de resistência e de diferença, não poderá − em última análise − ser jamais explanada, substituída, e muito menos validada por um texto. Neste sentido, espero vivamente que visitem a exposição antes de serem contaminados pelas palavras que se seguem.
A Shiki Miki Gallery abre pela primeira vez as suas portas ao público com a exposição THE HOLY PACKAGE onde Bassanti e Binau apresentam os trabalhos resultantes da sua mais recente parceria. A proposta expositiva assume uma estrutura bipartida, contemplando uma primeira fase que reúne um núcleo de pinturas a óleo e acrílico sobre tela, bem como alguns trabalhos de acrílico sobre cartão ou sobre papel manufacturado, e uma segunda fase onde se reúnem diversos desenhos a acrílico sobre tela. Todas as obras resultam de uma intervenção conjunta dos dois artistas, que as foram realizando ora em simultâneo ora de forma intercalada.
No caso das pinturas – lado A –, podemos encontrar uma linguagem tridimensional mais gestual, que apresenta uma variada e intensa paleta cromática associada ao óleo, com recursos variados tais como o stencil, o collage de papéis e tecidos, latas de aerossol ou marcadores, e onde o texto se encontra presente através de algumas frases soltas. No caso dos desenhos – lado B –, encontramos uma linguagem bidimensional mais gráfica, maioritariamente a preto e branco, numa estrutura simplificadora onde praticamente não existe o artifício nem a distracção da cor. Realizados em cadavre exquis, tratam-se de narrativas cartoonizadas ou de “poemas visuais” onde o desenho e a caligrafia se (con)fundem num mesmo recurso estético.
Os objectos artísticos gerados por esta parceria transportam-nos para um universo imagético onde a esfera − e a estratosfera − do “fantástico-absurdo” se conciliam, em uníssono, na tradução estética de uma simbólica transonírica de vincado cunho humorístico.
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Entendendo a arte como laboratório do imaginário, permeável a uma enorme pluralidade de fenómenos e influências externas, tanto Bassanti como Binau procuraram outros referentes durante o processo de criação estabelecendo, desta forma, links ao trabalho de outros artistas com os quais se identificam. Neste sentido, a música participou directamente na construção de novos itinerários narrativos[1], através da selecção e conjugação entre distintos fragmentos dos repertórios sonoros de autores como Patty Smith, Tom Waits, Laurie Anderson, Morphine, Marisa Monte e Benny Lava – entre outros.
Tanto Bassanti como Binau permitem que os trabalhos ganhem uma autonomia e dinâmica com vida própria, sendo que somente entendem as obras por concluídas quando estas atingem “um certo ponto de gravidade”.
Para Bassanti, criar é uma pulsão vital, assumindo o seu trabalho de pintura como o primeiro e grande amor. Esta óptica do pintor é projectada nas suas distintas áreas de expressão criativa como partículas de um universo comum que dialogam entre si, confluindo num mesmo fluxo discursivo que é transversal a todas as suas obras.
Bassanti traça um paralelismo entre a inspiração e o acto de respirar aquele ar que entra nos diferentes momentos e camadas do percurso criativo – e que se automatiza na ausência do self –, como ferramenta para a materialização do mundo espiritual. Um processo que considera xamânico e onde o artista se converte em veículo potenciador de um terapêutico “global detox”. As suas obras são, neste sentido, entendidas como portal de acesso a um mundo outro onde sagrado e profano se (re)encontram numa relação simbiótica.
Para Binau, criar é uma imposição quase animalesca da sua expressão individual. Enquanto artista-sensitivo, a inspiração é uma voz que lhe chega facilmente em momentos-chave, partindo de “um salto de cabeça” que pressupõe a existência de um pacto de Fé – enquanto motor gerador de novas experiências –, entre o artista e o seu trabalho.
Bassanti influência Binau com uma renovada perspectiva de trabalho na criação de imagens, recebendo deste um revigorante input no que se refere a formas, cores e linhas. Por outro lado, Binau transmite a Bassanti um entusiasmo vibrante pleno de frescura, juventude e alegria, considerando-o um verdadeiro companheiro anímico e sentindo grande proximidade no processo alquímico da Pintura e na união cúmplice do isolamento característico de quem habita o “lugar sem lugar” do atelier.
Apesar de terem percursos e referências estéticas distintas, Bassanti e Binau alcançaram uma linguagem comum que se foi solidificando ao longo desta experiência. A linguagem de Binau é marcada por expressões estéticas muito gráficas, pela bidimensionalidade e pelas cores planas da escola do design, dos cartoons e da street art, tendo como referentes o surrealismo pop de Mark Rayden, o cunho dadaísta de Yves Klein, a intensidade sarcástica dos graffitis de Blu e a potência do grafismo de Broken Fingaz. Bassanti vai ao encontro dessa linguagem por via dos referentes da pop art, das linguagens do outdoor e do design de comunicação de Keith Haring tendo, porém, a influência do lado mais explosivo de Pollock, da escala gigantesca de Baselitz ou do lado mais selvagem de Penck.
O resultado desta parceria apresenta uma certa afinidade formal com o grafismo dos fanzines e com toda a ampla linguagem vinculada à arte urbana que, contudo, é aqui transposta para suportes mais clássicos e exposta em espaço privado.
Nos trabalhos realizados ressaltam-nos alguns elementos mais constantes. As mãos são um elemento comum aos dois artistas já que ambos as consideram um veículo de criação primordial de onde emana toda uma essência que está totalmente ausente nos meios tecnológicos. As personagens monstruosas são criadas maioritariamente por Binau, sendo que Bassanti flutua à volta delas. Estes pequenos monstros de Binau fazem parte de um discurso já estabelecido pelo artista, que lhe permite uma liberdade expressiva não ofensiva – embora não tenha nenhuma preocupação com o carácter “anti-estético” ou com a agressividade que as suas figuras possam transmitir. Neste sentido, apesar da comicidade que as envolve, elas não abdicam do seu lado assustador, o que permite ao artista encarar de frente estes monstros internos através das obras realizadas. Já Bassanti teve um longo período no qual pintava os seus monstros através de um “grotesco” sem filtros. Contudo, sente desde então uma responsabilização perante aquilo que produz, e considera que não deve devolver violência ao mundo. Apesar do pendor controverso de alguns dos seus trabalhos, Bassanti reformula as suas figuras num esforço consciente de apaziguar estas “fobias e agonias” internas transformando-as assim em algo distinto. Tenta, deste modo, gerir da melhor forma possível a dualidade entre o bem e o mal – que inevitavelmente também faz parte do “pacote” mas que se dilui e se transmuta no melting pot do seu processo criativo.
Toda a exposição se afirma como crítica ao modus operandi do colectivo social estabelecido e às esferas institucionais que o promovem – com as quais nenhum destes dois artistas pactua. Todos os trabalhos realizados – bem como as escolhas subjacentes aos temas abordados – se constituem como actos políticos. Tanto Bassanti como Binau defendem um entendimento da arte imune às etiquetas académicas e aos circuitos padronizados da indústria cultural.[2] Dessa forma, ambos se assumem enquanto sujeitos estéticos como via de libertação, e expressam através das suas obras um pensamento livre – e sobretudo um sentimento espontâneo – que se afasta das convenções e que é aberto às mutações externas e internas do Ser.
Ao longo desta exposição levantam-se diversas questões que manifestam uma postura crítica relacionada com o lado enfermo de uma sociedade autofágica e hermética, que implode pela incapacidade de ser verdadeiramente ecléctica e que necessita urgentemente de terapia. Podemos, pois, encontrar nas obras expostas a questão da violência capitalista – personalizada aqui pela figura do homem de negócios –, a questão da nocividade que adveio da industrialização, a questão da “família disfuncional” associada ao desenvolvimento do ser humano, a questão da medicamentação, a questão da alienação, a questão das drogas, a questão da verticalidade do artista e da liberdade criativa espartilhada pelo mercado da arte e pelo mundo académico, a questão das religiões organizadas como instrumentos de gestão social, a questão da incapacidade de convívio directo entre as pessoas gerada pela proliferação e pelo mau uso da realidade virtual, a questão do lado romântico e dramático da solidão refugiada do artista no espaço de atelier –enquanto espaço emocional, vivencial e espiritual – a partir do qual o artista sintoniza e recebe as frequências do mundo exterior, e a questão da Fé associada ao acto criativo no sentido de re-ligar, defendido aqui como a única religião possível.
A questão da doença mental bipolar é algo “familiar” a ambos os artistas e, muito embora não se traduza de forma linear, ela está presente de modo indirecto nos trabalhos realizados, tendo percorrido também todo o processo criativo que os gerou. Ela existe ainda como aspecto subliminar, na estrutura bipartida desta exposição (lado A e lado B). Nas obras apresentadas, a dicotomia sanidade versus patologia não adquire um aspecto pesado nem tão-pouco leviano, sendo antes tratada com humor através do sentido do non-sense e do absurdo. Tal como a devoção perante o acto criativo, esta “enxaqueca mental” faz também ela parte do package que integra o título da presente exposição e que engloba – para além dos muitos outros que já referimos anteriormente – também este aspecto. Mas se, por um lado, a arte pode ser aqui entendida como o meio para o artista escoar e sair deste sofrimento no sentido terapêutico[3], por outro lado a loucura impõe-se também como elemento imanente à sanidade anímica − bem como à sua capacidade regenerativa −, através de um estado privilegiado de consciência que transpõe o lugar comum de habitat do “corpo enfermo” e que é, ao final, inerente à própria condição humana. Encontramos ainda uma alusão clara a Jodorowsky através da ideia do sagrado contida na obra cinematográfica “Holy Mountain” – transposta aqui em paralelo com a concepção de “Holy Package” – através da noção de que o trabalho em si é uma fonte de terapia tanto para o criador como para o espectador.
Da genuína conexão criativa entre estes dois artistas gerou-se assim uma terceira entidade conjunta, que se distingue daquelas que os caracterizam isoladamente. Esta “forma de arte outra” surge da sensação, partilhada por ambos, de absoluta liberdade criativa durante todas as etapas desta colaboração, da valorização do relativo, do momentâneo e do “acidente”, numa entrega plena à dinâmica sinestésica dos sentidos – e de todos os sentimentos que lhe advêm. Eles são dois agentes activos na construção do seu tempo: o do Presente
Ambos compartem o ideal de primazia do processo criativo sobre a obra final, assumindo um mesmo compromisso metafísico na incessante busca de verdades de valor extra-temporal, e do encontro da perenidade no efémero como via de abertura para novos espaços de possibilidade perceptiva, onde paradoxos e bipolaridades se conseguem gerir e coexistir de forma natural.
Nesta frequência sintonizada em flow with the present, Bassanti e Binau assumem-se como veículos/canais por onde passa informação, experimentando durante este processo certos estados de consciência alterada, que lhes permitem navegar pelo desconhecido até alcançarem aquele hiato de fusão onde o ego se anula e o gesto se solta – sem tempo nem espaço outro que não seja o do próprio fluxo criativo.[4]
Ana Cardim · Sintra, Novembro 2016
[1] Esta atitude recorda-nos aqui a figura do sampler bem como de toda a teoria defendida por Nicolas Bourriaud sobre a estética de pós-produção através da apropriação de materiais preexistentes e da sua posterior ressignificação.
[2] A industrialização das artes, tal como o afirmou Theodor Adorno, conduz a uma “coisificação das almas”.
[3] Encontramos nesta ideia certos ecos da designada arte bruta
[4] Podemos remeter este fluxo abstracto de que nos falam Bassanti e Binau, para o conceito de furor divinus que a visão neoplatónica do círculo filosófico renascentista defendia constituir-se como parte indissociável do processo criativo – em equivalência evidente entre o conceito de inspiração e o da manifestação da idea. Podemos também remeter-nos para a visão hegeliana onde o espírito metafísico se objectiva e materializa em certos momentos da criação artística, participando da obra de arte como manifestação singular e sensível. Ou ainda, considerar que será este o único processo que confere, no sentido benjaminiano, o carácter aurático às obras de arte – entendendo esta aura como figura simbólica que se projecta no espaço e no tempo em correspondência directa com o genuíno valor da obra de arte.
Curator's Bio
ANA CARDIM
Nascida em Lisboa em 1975, Ana Cardim assume-se simultaneamente como artista e curadora. Licenciada em História da Arte (FCSH), conclui em 2010 o Master em Teoria e Estética das Artes Contemporâneas (UAB, Barcelona) publicando, no mesmo ano, o artigo “Turbulências Caóticas” na revista cultural BYPASS #2.
Como curadora foi apoiada pela Direcção Geral das Artes, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Instituto de Camões no conceito e curadoria do Garbage Pin Project (2008-12) bem como na coordenação do Simpósio Internacional de Joalharia Contemporânea Bread&Jewels (Barcelona, 2010). Tendo organizado variados projectos expositivos para outros artistas, participou como oradora em diversas conferências e masterclasses e desempenhou ainda funções de assessoria e direcção artística tanto em galerias como em associações culturais.
O seu trabalho como artista parte do fundo referencial da joalharia de autor, o qual se estende às áreas da performance, da instalação, do vídeo, da fotografia e do design.
Expõe regularmente desde 2006 em galerias e espaços culturais a nível nacional e internacional: Lisboa, Porto, Barcelona, Amesterdão, Berlim, Nuremberga, Munique, Antuérpia, Riga, Los Angeles, São Francisco, Portland, Nova Iorque e Tóquio. Recebeu o 1º Prémio de Joalharia Contemporânea Enjoia´t (Barcelona, 2008) e participou no Festival Internacional de Arte Contemporânea BAC CCCB (Barcelona, 2009).
Fotos de Helena Colaço Salazar